O trabalho de luto em tempos de Covid-19

É comum a ideia de que só o tempo cura nossas feridas emocionais, em especial, as perdas. É verdade que o tempo tem o seu papel, mas esta cura não é um processo passivo. Pode-se entender que o que descreve o que ocorre conosco quando perdemos algo, ou alguém amado, é o luto como um trabalho. No início, ficamos tão absorvidos por essa tarefa que nos desconectamos do mundo fora de nós. Nada parece ter importância, a vida perde seu brilho. Sentimo-nos desvinculados dos outros. Essa tristeza e desinteresse parecem um quadro depressivo, mas não é. É a dor do luto, que vem em ondas e que tem um fim. O enlutado sabe por que e por quem chora; o deprimido, não.

Nem sempre a reação é de expressão da dor. Paradoxalmente, algumas pessoas reagem com o que descreveríamos como frieza, ou como muita força. Esta anestesia é uma defesa contra a dor. É como se a pessoa temesse não suportar o sofrimento e ser engolida por ele.

As reações ao luto, e sua elaboração, dependem de nossas histórias de perdas. Às vezes, esta relação é flagrante, quando a perda atual nos faz reviver anteriores. Em outras, nossos pensamentos, expectativas e o modo geral de resposta seguem um padrão que nós mesmos não reconhecemos. Esta nossa história constrói parte do significado de nossa perda atual.

Parte dolorosa do luto é a paulatina aceitação da realidade da perda. Isso não se dá de forma repentina. Por isso, as pessoas se referem a um sentimento de irrealidade, como se o fato não tivesse ocorrido, como se estivessem presos em um pesadelo do qual esperam acordar. Quando a perda é por morte, a realidade da morte impõe a aceitação de uma temporalidade que é do nunca mais, de uma forma aguda. Esta realidade implica em inúmeras despedidas dolorosas diante das lembranças evocadas pela falta.

Quando se perde alguém amado, todo o nosso universo é afetado. Nossas expectativas de futuro, os efeitos da cessação das funções objetivas e subjetivas executadas pela pessoa que se foi, o que implica uma reorganização da família, ou do trabalho, com redistribuição destas mesmas funções. O luto resulta em um trabalho criativo na ordem dos significados, da visão de mundo, de reinserção no ambiente e de construção de um espaço para resguardar o amor e as lembranças.

Estas despedidas são parte essencial do trabalho de luto. Além disso, é preciso aceitar a dor do luto, passar por ela é uma condição para superá-la. O luto não é uma doença, não deve ser patologizado. É um processo normal. Ele se torna preocupante do ponto de vista de saúde mental quando ele fica além da capacidade da pessoa processá-lo.

As reações ao luto e sua elaboração também dependem de nosso ambiente. São favorecidos pelos rituais de despedida e fúnebres, influenciados pelas crenças sociais e familiares e espirituais, sustentados pelas redes de apoio, sejam elas religiosas, familiares, comunitárias e/ou psicossociais. Assim, o ambiente social pode facilitar ou dificultar o trabalho do luto.

Quando as perdas são repentinas, violentas ou inesperadas, quando são de jovens ou de crianças, quando são múltiplas, quando os rituais não podem ser realizados, ou quando se impõem aspectos estranhos ou grotescos, o trabalho de luto fica dificultado. Algumas destas condições nos remetem às perdas atuais por Covid-19.

Assim, as condições ambientais a que estamos expostos estão compostas por elementos que tornam o trabalho de luto mais complexo, que podem trazer por consequência o desenvolvimento de um luto persistente, ou o desencadeamento de Transtornos, como os de Humor (Depressão Maior e Bipolar), e Transtornos de Ansiedade.  Por esse motivo, as estratégias de saúde mental que visem reduzir os efeitos ambientais danosos são fundamentais.

Ligações, vídeo conferências e mensagens escritas de familiares propiciam condições para os ritos de despedida, quando isso é possível. Assim também com relação aos rituais fúnebres, formas alternativas que envolvem os meios digitais e as redes sociais podem funcionar como espaço para expressão e troca de afetos, tão importantes para o apoio nos momentos de despedida. O papel do psicólogo, diretamente, e/ou orientando e apoiando os profissionais da linha de frente é essencial. O apoio psicológico aos pacientes, aos familiares, aos profissionais da linha de frente e àqueles trabalhadores que lidam com a realidade da morte diretamente são uma necessidade no âmbito da saúde mental.

Cabe também salientar que um acompanhamento psicológico do luto nessas condições ambientais adversas, favorecendo a sua elaboração, pode exercer um papel preventivo com relação ao luto complicado e uma identificação precoce do desencadeamento de transtornos mentais.

Temos que ter em mente que todos nós, cada um ao seu modo, encontramo-nos sobrecarregados pela crise que vivemos. Isso exige sensibilidade para identificarmos quando aqueles que nos cercam, ou nós mesmos, precisamos de ajuda. Esta é uma tarefa importante dos gestores: identificar e propiciar apoio psicológico grupal ou individual quando da perda de colegas de trabalho. A dor não atinge só as famílias, mas também àqueles que formaram laços por seu convívio cotidiano no trabalho.

Prof.ª Dr.ª Claudia Maria Sodré Vieira

Psicóloga e Psicanalista

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