Eu costumo citar Simone de Beauvoir com frequência. A frase que mais uso é provavelmente a mais famosa dela.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (do livro O Segundo Sexo)
Tirada do contexto assim, a frase ganha contornos quase inspiracionais. Mas sua construção parte, na verdade, de um pensamento bem mais profundo e fundamental sobre como o papel da mulher é um construto social, resultado do que é imposto ou proposto ao gênero em cada cultura. Ou seja, o sexo, a condição químico-física, não é suficiente para definir a mulher. Para a filósofa francesa, o gênero, sim, é essa manifestação. É a partir dele que se forma a mulher.
E um dos papéis reservados à mulher em muitas culturas é a maternidade. Não a matéria física da gestação e do parto em si, mas a maternidade como um inexorável papel social, construído desde a infância com bonecas bebês, cobrado na vida adulta como estágio obrigatório e natural pós-casamento e colocado em xeque quando a mulher, sobretudo a mulher dos nossos tempos, se depara com a falsa dicotomia entre carreira e filhos.
Em tempo, aqui não vou nem arranhar a superfície de todas as complexas questões que envolvem subvalorizar a mulher numa sociedade patriarcal, o que inclui o mercado de trabalho. Quero abordar neste texto especificamente o recorte da maternidade, porque escrevo aqui num mês de maio, tradicionalmente o mês das mães.
Se o gênero é, como vimos, a manifestação da construção social, ele serve para ordenar, para colocar ordem. Mas tudo o que ordena, exerce poder sobre algo. É como se a sociedade dissesse que o homem deve ser forte e provedor, enquanto a mulher, sensível e cuidadora. Ambas posições pré-determinadas e rígidas, que desconsideram o indivíduo como ser diverso e único. É muito importante entender isso para desvelar o olhar. Esses papéis sociais são construídos, não dados. Logo, não são uma realidade inexorável. Isso pode ser reconfigurado. Numa sociedade eminentemente patriarcal, significa dizer que o papel dado a ela pode ser reconstruído. Toda mulher tem o direito de ser o que ela quiser.
Inclusive mãe.
E sendo, precisa encontrar nas estruturas ao seu redor segurança, amparo e inspiração para viver de maneira plena esse momento. Não pode ser um peso redobrado que sugira desvantagem ou atraso na carreira. Não pode ser uma bifurcação sem volta. Não pode recair sobre a mulher toda a responsabilidade do cuidar (que triplica jornadas que passam pela criação, pelos afazeres domésticos e, em muitos casos, até mesmo pelo cuidar do homem adulto).
Historicamente, fomos formatadas para a maternidade. Depois, quando chegamos ao mercado de trabalho, convivemos com a ideia de que escolher a carreira excluiria a escolha da maternidade e vice-versa. Escolha que a figura masculina não é obrigada a fazer.
Nem mesmo os direitos trabalhistas garantidos pela CLT minimizam os efeitos desta cultura que acaba excluindo boa parte das mães do mercado de trabalho. Tanto que nos dias de hoje, quase 50% das mulheres que retornam da licença maternidade não permanecem nas empresas, segundo um estudo da FGV.
Ou seja, quando falamos das pessoas que ajudam a construir os negócios e as empresas, essa é também uma responsabilidade de quem cuida dos Recursos Humanos. Desconstruir este contexto e abrir um caminho para o acolhimento é uma responsabilidade coletiva. E é dever do mercado, seja no setor privado ou público, garantir a oportunidade de desenvolvimento e construção de uma carreira sólida para todas. Portanto, a iniciativa de adotar políticas para garantir que essas mulheres tenham seus espaços respeitados dentro do mercado deve partir das próprias empresas.
No Bradesco, tenho orgulho de dizer que a taxa de retenção após o retorno da licença já atingiu 96%. Dentre as muitas ações nesse campo, criamos um programa a que demos o nome de “Juntos Pela Gestação Saudável”, para acompanhar com uma equipe obstétrica e dar suporte no desenvolvimento da gestação de funcionárias e familiares até o pré-natal. Também acompanhamos o retorno de licenças parentais por nossa central de apoio, o Lig Viva Bem, e, em aderência ao programa Empresa Cidadã, garantimos a ampliação da licença-maternidade (e também da licença paternidade). Durante todo o ano, promovemos encontros para o fortalecimento do feminino na sociedade e investimos em ações e treinamentos para garantir que avaliações de performance, planos de carreira e promoções não sejam prejudicadas pela ideia perversa de falta ou estagnação que a gravidez e maternidade ainda suscitam na sociedade. Essa é a busca incansável por equidade.
Equidade é uma palavra bonita, com um sentido perfeito. Porque a busca por um olhar consciente para o papel da mulher na sociedade não é a busca por igualdade simples. É impossível um ser humano ser igual a outro. Nem gêmeos o são. Essa busca é, outrossim, por equalizar condições desiguais, ou seja, permitir que pessoas tenham as mesmas condições de progredir, independente de quem sejam. É mapear as lacunas sociais, dívidas históricas e problemas estruturais para propor ações afirmativas que os corrijam.
Em essência, ter um olhar atento e permanente para com as pessoas é uma espécie de maternidade também.
E como toda mãe, queremos um mundo seguro para nossas pessoas.
Nesse sentido, tomando a liberdade ousada de parafrasear Simone de Beauvoir, eu não nasci feminista. Tornei-me. E é justamente nesse processo de aprendizagem contínua que vamos compreendendo que a busca por um futuro com mais respeito passa pela equidade e que, sobretudo, esse é um desafio coletivo.
Eu sou porque nós somos. E nos tornamos.