Simone Biles e Seu Derradeiro Salto

Simone Biles é um fenômeno; ganhou vinte e cinco medalhas em campeonatos mundiais, sendo dezenove delas de ouro. Nas Olimpíadas do Rio de 2016 fez história subindo ao pódio cinco vezes, com quatro medalhas de ouro e uma de bronze. É a ginasta mais condecorada na história do seu país em mundiais. Em 2016, foi incluída na lista de 100 mulheres mais inspiradoras e influentes pela BBC.

Que currículo!

Mas ela é um ser humano, caso alguém não tenha se dado conta disso. Ufa!

E gritou para o planeta seu direito de ser humana quando preferiu não participar das provas individuais de ginástica artística há alguns dias. E o mundo parou diante disso. Não se fala de outra coisa. Impactado, precisei refletir mais em profundidade sobre isso.

A sociedade tipicamente ocidental se forjou com a mentalidade de que devemos buscar “vencer” na vida. Nosso modus operandi gira em torno da ideia de prevalecer sobre o outro, destacar-se, superar quem está ao lado, talvez influenciados por uma leitura reducionista de Darwin que que concluiu que em várias espécies foram os mais aptos que evoluíram. Nós vivemos para sermos “fortes”, os melhores. Nos EUA consolidou-se uma forma de dividir o mundo entre winners e losers (sic). A competição e a conquista individual, em todos os campos da vida, tornaram-se a metafisica do ser humano.

Nas organizações para as quais trabalho, vejo um histórico muito comum entre os executivos. Sujeitos que passaram a vida buscando provar para os outros que são muito bons, fortes, resilientes, feras. Primeiro para os pais, depois para os amigos, para o gestor, o RH, para o mercado, e agora, para os milhares de seguidores das redes. Cristalizamos a obsessão por sermos perfeitos, super homens e mulheres maravilhas, e abraçamos a aversão ao erro e à imperfeição. Mas como não existe nenhum ser humano perfeito, escondemos nossos erros e imperfeições, travamos nossas emoções e abafamos nossas fraquezas.

No corpo nos enchemos de botox para parecermos mais jovens, usamos a abusamos do Photoshop e inundamos as redes de posts maravilhosos e felizes. E como sabemos, no fundo, que somos fracos, limitados e vulneráveis, escolhemos algumas pessoas para serem nossos seres perfeitos, invencíveis, ídolos intocáveis, mitos. Elegemos aqueles que compensarão nossa frustração por sermos imperfeitos. Quando um desses super-heróis cai, ficamos contrariados: como é possível ir por terra nossa última esperança de perfeição?

Biles escancarou que super-heróis não existem, só nos filmes da Marvel ou DC. Aqui, na vida real, o que temos são seres lindos, especiais, mas frágeis, limitados, falhos. Não será essa a beleza da vida? O contraste e paradoxo entre luz e sombra, beleza e feiura, bem e mal etc.? Há muitos que não acham isso, por isso aceleram a produção de robôs parecidos a humanos. Estas máquinas pelo menos não devem frustrar-nos. Há uns dias no intervalo de um jogo de basquete um robô fez alguns lances livres perfeitos, sem aro… daqui a pouco as Olimpíadas serão com eles, assim evitamos surpreender-nos com essa coisa chata que é a vulnerabilidade humana. Bem-vindos ao deserto da Matrix…

Essa fixação pela perfeição, pela competição e vitória nos fez abandonarmos o prazer de desfrutar do caminho, a alegria de jogar e brincar, deixamos isso para as crianças, afinal somos adultos sérios (e chatos!). Biles disse que perdeu o prazer de fazer suas performances porque se sentia pressionada com o peso do mundo nas costas. Tinha que corresponder à expectativa que todos colocaram nela, e com isso perdeu seu eixo, sua motivação intrínseca. Mais ou menos como os profissionais que citei acima.

Escutei vários atletas nesta semana comentando que deixaram de se divertir quando praticavam sua arte. Uma atleta de vôlei disse que exagerou na concentração e com isso ficou rígida, perdeu a leveza e naturalidade dos movimentos, e adivinhem, perdeu também os resultados que queria. Aí está o paradoxo: essa fixação por ser melhor e superar todo mundo acaba nos levando à ansiedade, contração, e perdemos o que mais queremos: os resultados. Parece que estes vêm quando estamos conectados, presentes, em comunhão com o que está à nossa volta, inclusive com os outros competidores, no caso de uma competição como as Olimpíadas.

 Não foi isso que nos ensinou aquela pequenina mestra de 13 anos, que encantou o mundo em cima de um skate, dançando entre suas descidas, e interagindo com suas adversárias? Rayssa mostrou que há outra forma de encarar a vida, muito mais leve, e que ganhar é uma consequência de estar presente fazendo o que gosta. Não estava lá para mostrar ao mundo que é fera ou para compensar a frustração de milhares de pessoas que, imperfeitas, querem projetar a perfeição não alcançada, no outro.

Como diz a música de Nando Reis, “o mundo está ao contrário e ninguém reparou”. Tem muita coisa errada, e uma dela é termos virado adultos pesados, com medo de “não entregar” ou falhar. Nos algemamos na autocritica e no pânico ao erro, quando cair é parte da aventura da vida.

Mas Simone veio como uma mensageira para lembrar-nos que somos Sapiens, cheios de imperfeição, o que não embaça em nada nosso esplendor. Apesar de alguns infelizes como o subprocurador do Texas que a chamou de vergonha nacional (quem sabe ele acha que a Terra é plana?), o que vi foi uma multidão de apoiadores da ginasta. E isso me encheu de esperança. Pode ser que uma parte importante do mundo esteja acordando para a verdade da existência. O choque da notícia levou a uma solidariedade massiva com a atleta, e a uma chuva de reflexões, matérias, artigos (como este) que colocam em xeque essa crueldade de um mundo que insiste em negar o que é humano.

Para mim Simone Biles é um fenômeno, não só pelos feitos extraordinários da ginástica, mas, sobretudo, pela invejável coragem de priorizar sua saúde mental e física, mesmo sabendo o absurdo preço que teria que pagar por isso. Após sua decisão foi torcer com humildade e companheirismo por suas colegas, e aplaudiu muito sua adversária – a nossa Rebeca – quando a viu voar no solo. Está surgindo em Tóquio uma nova forma de ver a performance humana, cheia de falhas e de excelência ao mesmo tempo. Estou animado com essa reação do Sapiens que se recusa a tornar-se um avatar. Há luz no fim do túnel!

Paulo Monteiro

Consultor e Coach em Desenvolvimento Humano e Organizacional, Sócio da Hollun Consultoria

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