Mais do mesmo, originalidade e estilo

Com o acesso que temos às informações, é muito difícil depararmo-nos com algo original. As notícias são replicadas, as ideias são repetidas, as imagens redistribuídas. Nos provoca certo mal-estar mais do mesmo. Ao mesmo tempo, as pessoas sentem-se quase que obrigadas a expor o que pensam. Se é que podemos chamar de “pensamentos”; muitas vezes, são quase como elementos expulsos da mente para aliviar alguma emoção, ou são como ações, em geral bastante exacerbadas ou agressivas.

Vivi um dilema dessa natureza quando dei aulas: reproduzir ou criar ideias. Grande parte do que fiz foi reproduzir o pensamento dos autores, esforçando-me o mais possível para ser fiel aos seus discursos. Não era um trabalho simples. Era necessário me adentrar em um universo distinto do meu, buscar os princípios que norteavam as concepções teóricas e me esforçar para compreendê-las a partir de pontos de vista distintos, que nem sempre compartilhava. Era quase como mimetizá-los. Estou certa de que não havia originalidade nenhuma no que eu fazia, um trabalho de síntese e tradução.

O começo de meu trabalho como clínica tinha uma característica semelhante. Eu, quase sem perceber, intencionava me tornar uma cópia de meus supervisores e analista. Em outras palavras, me identificava com meus modelos. Penso que isso seja muito comum no começo da vida profissional de todos nós. Ao mesmo tempo, aspiramos ser originais, sermos nós mesmos.

Quando fui fazer mestrado e doutorado e passei a estudar a fundo o tema escolhido, minha pesquisa teórica, percebi um movimento distinto. Passei a me esforçar por discriminar o pensamento de outros autores daqueles meus, me responsabilizar por meus pensamentos e desenvolvê-los naquilo que se distinguiam do que eu estudava. Não é um processo fácil;  eu diria que é bastante assustador. O novo é assustador.   

Já em minha experiência clínica, o processo inicial foi outro. Apesar de haver a tendência à identificação, os pacientes não se ajustavam como eu ao meu analista, ou como eu imaginava que se ajustariam aos meus supervisores. Constantemente a resposta da realidade vivida me fazia rever minhas expectativas. Os pacientes são nossos melhores professores e melhores livros. Ou, dito de uma forma complementar, nossos pacientes nos ajudam a compreender os ensinamentos de nossos professores e dos livros que lemos. Mas isso ainda fica muito distante do que é a experiência clínica.

Como este artigo não é acadêmico, ou dirigido a meus pares, vou tentar usar uma linguagem mais generalista. Eu diria que os pacientes me confrontam continuamente com uma faceta desconhecida deles e com um vazio de significado em mim. Às vezes, não conseguindo suportar o silêncio dentro de mim, penso em algo para falar para me tirar dessa enrascada. Às vezes, pior do que isso, falo alguma coisa que se parece com uma interpretação, ou faço uma pergunta, ou um comentário desnecessário. Isso produz um certo alívio, mas é como uma distração. No entanto, se eu recupero o senso, aguento o vazio ou acalmo o grande barulho de ideias e imagens em minha mente, uma imagem ou um pensamento emerge e ilumina, dando sentido ao que está acontecendo e é possível compreender algo novo a respeito do paciente. A próxima questão seria o que dizer, como e quando.

É possível que a interpretação processada, por meio de sua origem no modo descrito acima, auxilie o paciente a observar a si mesmo de um novo ângulo e isso o ajude a compreender algo sobre si mesmo, elaborar essa novidade e transformar-se. O fruto do trabalho desse par é único, e nesse sentido, original. Não pode sequer ser reproduzido com os mesmos elementos. O transcorrer de muitas experiências desse tipo favorece o desenvolvimento de um modo de contenção, de falar, de organizar os pensamentos, de priorizar algumas concepções que se mantêm razoavelmente estáveis. Os estudos específicos, os livros lidos, as experiências com os pacientes e como o paciente, com os supervisores, a história de vida, formam o esquema estável. Isso define o estilo do terapeuta. Estilo se define por repetições.

A originalidade se define pelo confronto com o desconhecido. Por isso, é ingênuo pensar que seremos originais sendo nós mesmos, como se isso fosse algo já pronto esperando pelo momento certo e favorável para aparecer. Originalidade é fruto de um ato criativo e é debitado de um fundo coletivo de conhecimento acumulado de muitas e muitas gerações. É como se, para sermos originais, precisássemos imitar, mimetizar, identificarmo-nos para, a partir desse trabalho, como em uma cozinha, combinando ingredientes e provando-os, encontrássemos um sabor peculiar, uma combinação nova de ingredientes palatável.

É possível que a combinação estável, o esquema também seja original, aí teremos um estilo original.

Cada profissão tem os seus métodos e seus ingredientes, cada profissional, seus modelos e seu percurso. Ser original e ter estilo é fruto de muito trabalho, esforço e coragem, e de um grande débito com aqueles que nos antecederam e nos ajudaram na nossa formação pessoal e profissional.

Prof.ª Dr.ª Claudia Maria Sodré Vieira

Psicóloga e Psicanalista

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