Sobre exposição voluntária a riscos

Muito se tem escrito sobre os efeitos da pandemia sobre a sociedade e sobre os indivíduos. Muito ainda haveremos de escrever, dados os desafios que nos traz a Covid-19. Como psicóloga e psicanalista, tenho acompanhado de perto os sofrimentos que atingem as mais diversas áreas da vida das pessoas; pessoas enlutadas, traumatizadas, fazendo um grande esforço para se recuperarem e enfrentarem as exigências da vida cotidiana.  Ouvimos muitas vezes os profissionais da linha de frente alertarem sobre as tragédias que estão ocorrendo no sistema de saúde, às vezes implorando aos prantos para que as pessoas sigam os protocolos de cuidados. Em meio a essa realidade, há uma pergunta que não deixa de ressoar: como é possível as pessoas reduzirem os cuidados e desafiarem os riscos iminentes realizando festas clandestinas? Como é possível nas condições catastróficas que nos encontramos, com mais de 2.000 mortes diárias? Não questiono a oposição daqueles que querem manter suas atividades de trabalho e sustento, mesmo diante dos perigos, mas, sim, a confrontação da realidade de forma tão flagrante. Para muitos, deixar de trabalhar ou de buscar meios de subsistência, quase deixa de ser uma opção e é tido como a única saída. Porém, deixar de usar máscaras ou ir a uma festa clandestina deflagra uma outra condição em que não está em jogo evitar um outro risco. Trata-se de uma escolha sem o estresse do dilema.

Hoje, estando a cidade de São Paulo na fase vermelha, com todas suas restrições, presenciei uma cena nas calçadas de uma padaria. Vários homens sem máscaras, conversando, alguns com xícaras de café depositadas no chão, bem juntos, uns dos outros. Eles estavam com seus carros e motos estacionados próximo a eles. Um deles com uma camiseta que estampava uma caveira de máscara. Eles falavam alto e pareciam muito à vontade com a situação. Não eram adolescentes, deviam estar numa faixa de 30 anos. Se fossem adolescentes, poderíamos pensar que seria uma expressão contextualizada de rebeldia e negação; a mesma que os tornou vítimas da AIDS em outros tempos, de gravidez indesejada, de acidentes sob efeito de álcool e outros problemas e perigos. Da mesma forma, as festas clandestinas com adolescentes parecem ser minoria. De que se trata, então essa cena recorrente e menos grotesca que as festas clandestinas?

Precisaria fazer uma digressão e considerar aspectos mais amplos. Não quero me adentrar em conteúdos políticos, mas vou me utilizar de figuras públicas ligadas à política para evidenciar o que interpreto como sendo uma mensagem ideológica. O Executivo Federal tem se manifestado seguidamente contra as medidas de restrição e de prevenção, como o uso de máscaras. Ter medo do vírus é ser maricas. Sofrer luto é “mimimi” e a realidade tal qual é apresentada pelo Ministro da Saúde, que afirma não estarmos com o sistema de saúde em colapso, destoa do quadro apresentado por outros órgãos e pela imprensa. Como disse, não vou entrar no mérito da intencionalidade política desses atos. Ora, o Brasil apresentado oficialmente pelo Executivo Federal e seus ministros é muito mais seguro e mais bem organizado do que os outros apresentados por outras narrativas. Se a pessoa consegue acreditar na versão oficial seu medo é muito menor, os riscos diminuem e se sentem sob uma forte liderança que luta contra inimigos que querem desestabilizar o país, aqueles que apresentam a versão mais assustadora da realidade. Uma parte dessas pessoas, que creem na versão oficial, segue a imagem de um grupo de homens viris que não se deixam levar pelo medo, que enfrentam o momento atual heroicamente sem máscaras, de cara limpa. Afinal, os números de mortos e contaminados são superestimados e não se pode confiar na grande imprensa.

A estampa da camiseta da caveira com máscara me vem à mente mais uma vez. Ela pode significar que morreremos mesmo nos cuidando e, sendo assim, vamos nos divertir e viver a vida sem tantas restrições. Façamos festas! Uma pessoa me disse que quando a morte chega, não temos como evitar. E ela não chega na véspera. Por isso, ela não tinha medo da Covid-19. Disse isso sem máscara. Pois bem, se esse for o caso, será que ela atravessa uma avenida sem olhar se há carros vindo em sua direção? A diferença que há entre essas duas situações é que o vírus é invisível.

O que estou supondo é que as pessoas que se descuidam, ou que se expõem ativamente em festas clandestinas, podem estar não só avaliando, mas construindo e vivendo em uma realidade distinta. O que apresento é uma interpretação, mas os números de mortos são fatos e a falta de leitos em UTIs, idem. E estou levando esses fatos em consideração. Vivemos em um momento histórico em que temos que discriminar dados, interpretações e opiniões de fatos, sob o risco de reproduzir de forma automática versões distorcidas da realidade, aquelas que desconsideram, desmentem ou camuflam os fatos. E isso pode ser mortal.

Prof.ª Dr.ª Claudia Maria Sodré Vieira

Psicóloga e Psicanalista

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